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John William Waterhouse - Miranda (the Tempest), 1916 |
Há exatos dez anos morreu meu avô materno. Tive, na vida, pouco contato com ele, e ações de familiares próximos me afastavam de vovô de maneira criminosa, coisa que sempre soube, mas como era criança, não sabia me defender e/ou me impôr. Não chorei sua morte. Liguei meu mp4 em duas músicasad infinitum por dias, noites, madrugadas: GNR - Don't cry e John Frusciante - The past recedes.
Há exato um ano aconteceu o golpe. Foi uma voadora nos peitos, né. Politicamente me abstenho de dissertar sobre, é muito desgastante. Mas é também uma lembrança ruim, não só para mim, sem dúvida.
Hoje abri uma página e vi algo que não deveria ter visto. Sim, tudo isso tem conexão, mas são coisas que não convém detalhar. O que vi se assemelhou com o que vejo no espelho todos os dias e talvez, de algum modo, eu tenha compreendido bad trips em frente ao mesmo objeto. A memória para mim é a coisa mais importante, é o que comprova a existência. Me ver possivelmente confundida em outras memórias, que não são minhas ou de mim me causou náusea e desespero (sou muito desesperada, todos os dias, mas isso doeu mais), porque se não reflito a mim mesma para quem me enxerga, ou seja, se sou confundida, se sou uma cópia, se sou um produto, se sou um padrão, o que sou eu, se não sou eu quem transpareço? Qual é o sentido de não sermos nós?
Hoje arrebentei em algo que alguém pode chamar de choro, mas não é dos meus choros habituais. Costumava chorar como um bebê, com rios de lágrimas, soluços, nariz escorrendo, bocão-de-pá escancarado, caretas. Hoje os olhos ameaçam uma parca umidade, uma semi-careta se faz, e tudo se resolve tão rápido quanto um bocejo, sem líquido algum escorrer pelos olhos. O Paulinho da Viola (composição de Max Bulhões e Milton de Oliveira) em cada palavra conseguiu descrever o que houve, o que há, o que tem para hoje. Chorei por uma música que em toda a minha vida odiei, e de repente vi que se não tinha eu ali, agora está tendo, e parece que estou gostando. Não chorei pelas palavras - que acabo de descobrir e pensar muitos palavrões, porque como é que pode ser exatamente isso? -, mas pelo primeiro acorde, porque como eu disse, odiava essa música, mas instrumental é outra coisa.
Me sinto com 15 anos novamente. O que me lembra de vovô, era essa a idade que eu tinha quando ele faleceu. Era essa a idade que eu tinha quando ouvi The past recedes como se fosse a única música existente, e o passado parece que retrocedeu. É essa música que fui bisbilhotar a letra e de repente vi uma frase 90% semelhante a uma que eu mesma criei agorinha, antes do almoço, para poder explicar em palavras e imagens o que estou sendo hoje.
Me comunico por gifs e memes. Desde o ensino médio dizem que eu sou a própria representação de um emoji/gif em forma humana, porque minhas reações são claras e exageradas. Então, como não sou poeta, pensei no seguinte: "uma gota de veneno que transforma o oceano" - e imaginei uma animação de uma gota negra caindo lentamente no infinito azul do mar, e se espalhando por todo ele. Uma animação feita pelo artista do Pink Floyd The Wall (e da animação Hercules). O oceano são todos os meus sentimentos, e uma gotinha infima de veneno (maus pensamentos) se alastra neles todos, me deixando mal; e às vezes é tao pequena a gota que nem sei o que exatamente ela é que me fez tão mal assim. Quando li The past recedes, encontrei E cada gota do mar é o oceano inteiro. A imagem, que infelizmente não tenho capacidade de criar, pode ser substituída pelo videoclipe de Welcome to the machine, com animação do próprio Gerald Scarfe.
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Para quem tem mais de 20 anos, essa cena é a cara da abertura da novela A indomada |
O Guardador de rebanhos: IV Esta tarde a trovoada caiu
E eu, pensando em tudo isto,
Fiquei outra vez menos feliz...
Fiquei sombrio e adoecido e soturno
Como um dia em que todo o dia a trovoada ameaça
E nem sequer de noite chega.
Alberto Caeiro (Fernando Pessoa)
I am the son / And the heir / Of a shyness that is criminally vulgar / I am the son and heir / Of nothing in particular / You shut your mouth / How can you say / I go about things the wrong way? / I am human and I need to be loved / Just like everybody else does