Como posso me ver desde o começo
Se a lembrança não tem capacidade
Se não olho pra trás com claridade
Sêmen - Mestre Ambrósio
Desejava encontrar sobre o que escrever desde que reiniciei esse blog, e creio que finalmente me encontrei nos caminhos da escrita. Tanto me encontrei que houve o desvínculo da minha pessoa e de minha página em grupos de 'blogagem coletiva', porque por mais coletiva que eu pretenda ser com meu coração de esquerda, meus sentimentos e ideias são individuais, e não dava mais para me vestir com a roupa apertada de temas pré-fabricados. Não gosto de ser condicionada nem na menor das hipóteses.
Desde criança sento perto de papai para ouvir suas histórias, de seus irmãos, vizinhos, pais e avós. É de você se sentir n'O Auto da Compadecida: é Paraíba, é sertão, é fome, é alegria, graça e dança. É o cotidiano do sertanejo nordestino em sua pureza.
Tem aula de como funciona um alambique e um engenho de cana-de-açúcar que você não vê nas universidades, a menos que seu professor tenha trabalhado ou frequentado um engenho. Papai e vovó frequentaram. Vovô também. E bisavô.
É um tema familiar e muito do meu apreço, e será recorrente por aqui. Tanto por carinho e paixão, quanto para afugentar o mau agouro da xenofobia em relação à terra que só não é minha por uma compra de passagem antes do tempo. Fui fabricada lá, no nordeste, mas por erro de percurso acabei ficando pronta aqui no sudeste. Não que eu deteste minha terra natal de fato, mas apenas me identifico com o lá. Desculpem, mas é assim que me sinto, e se não me senti assim por um tempo, é porque tentava negar o que de fato eu era.
Como deu-se a entender nos últimos textos, fiquei nostálgica com o forró e os artistas nordestinos que tanto ouvi na infância. E de sincronicidade - sempre tem ela -, uma amiga percussionista do técnico em museologia deu o tema do nosso trabalho de conclusão: o Maracatu. Pernambucano, 'pai' do manguebeat, irmão do xaxado, xote e baião, do frevo, chamego, maxixe. Tem o nação e o rural (ou baque virado e baque solto, respectivamente). Tem a união entre características culturais do negro, o índio e o colono europeu. Tem hierarquia, reis, rainhas e corte (daí o cortejo), tem a boneca calunga, os instrumentos e as cores. Falo mais de maracatu quando terminar o trabalho, quem sabe posto trechos aqui.
Falei da história do Ariano Suassuna há pouco. Tinha sete anos quando assisti pela primeira vez, na tevê (preciso ler), como minissérie de 4 capítulos, com papai. Lembro até hoje. Lembro porque me era muito comum aquele cenário, por mais que não o tivesse vivido. Na verdade vivi, por no máximo por dois anos (1992-1994), quando morei no interior da Paraíba. Imagino profundamente, então consigo me transportar, de certa maneira, para o cotidiano do meu pai antes de seu êxodo rural. Ele tocava triângulo nos forrós, enquanto seu pai, meu avô, Zequinha Moreira, tocava sanfona/fole. Escadaria é um exemplo.
Lembro de uma novela (pois é) em que a mulher se descobria destinada a ser mãe-de-santo, que era parte dela, por mais que tentasse fugir. Não que eu acredite em destino traçado, quem traça somos nós com nossas escolhas e ações. Mas tem algo existente no universo, e eu não sei que força é essa, que nos chama, como algo irresistível e inegável. O que não nego e não resisto é a dança. É tremer os ombros ao som do triângulo, bater os pés conforme a percussão, o coração imitando o baixo e a sanfona fazendo um remelexo que expulsam para uma dimensão paralela qualquer sentimento mundano ou de vergonha, medo e limites morais. A mente fica numa economia de energia, onde se desligam todas as outras funções e se acendem os principais sentidos e os comandos corporais. Meu eu racional apagaria tudo isso por achar desnecessário e deveras piegas, mas é como dá para descrever o que me dá por ora.
Ontem, buscando músicas do último forró que fui, descobri Mestre Ambrósio. E me mandaram mais uma, que percebi que tenho num cd há anos, e que já ouvi dezenas de vezes. E que é do ano em que minha mana nasceu. E é tão histórica quanto qualquer outra música do gênero que estou namorando no momento. Talvez por isso essa paixão toda, porque combina com o que faço e amo fazer, que é historiar, entender o homem, suas ações no tempo e no espaço, o que produz de imaterial e de material. Todos esses artistas têm isso em comum, com boa quantidade de memorialismo na receita.
Citei muito Luiz Gonzaga nos trabalhos pedagógicos da faculdade. Não o ouvia na época, só quando em companhia de papai, mas sabia que era importante. Importante para diversos outros artistas que admiro, por exemplo o Raul Seixas. Essa sincronicidade toda é baita. É massa demais, porque uma coisa liga a outra e quando você vê pesquisou e uniu coisas que em raso nada dizem de importante. É como clímax de filme de aventura (muitos são ruins, mas me ajudaram a escolher minha carreira, não vamos criticar demais).

Para exemplificar algumas sincronicidades temos os seguintes bônus: 1. o símbolo do manguebeaté o caranguejo que, além de ser uma comida saborosa, é uma das representações do meu signo (câncer), e por tantas outras simbologias está no título - inclusive fui nos 20 anos de manguebeat, Festival Caranguejando na Praça do Patriarca ano passado. Manguebeat significa batida do mangue em termos gerais, e o caranguejo é comum nesses encontros de rios e mares. 2. Me descobri na bebida alcoólica favorita, que nem de longe é cerveja (que detesto). É cachaça o meu amor, que considero a esposa perfeita para o forró. Gosto sobretudo da sensação de rasgar a garganta, e estou inclusive estudiosa sobre o assunto, porque virei amante mesmo. Da artesanal. E não por conta de tudo isso, mas antes e com outros ritmos. Arrisco dizer que fez parte paralela do processo todo.

Por fim, o trecho da música escolhido para iniciar o texto se deve ao fato de estar plantada a semente, agora é germinar: decidi, depois de muitos anos de desistências, escrever o que sinto, penso, ouço, e quero registrar, desde os regionalismos até questões cósmicas. Porque é importante, é conhecimento, é sentimento, é arte e é o modo de vida do homem.